Estava ali sentado na cauda do piano velho de que meu avô havia deixado de herança para a família. No testamento não havia nada mais que um piano e uma casa imensa. Imensa e sem móveis já que por um erro de grafia, advogados e promotores interpretaram dinheiro e bens “supérfluos” como “parte” da doação aos institutos pobres do estado em que eu morava. Malditos democratas que esqueceram que tanto dinheiro dividido entre tantas instituições iria dar tão pouco que mal poderiam comprar mais do que um conjunto de moletom para cada velhote abandonado e crianças órfãs, e de lambuja, criaram mais uma família pobre com um imóvel desvalorizado devido à sua localização, aos impostos dele cobrado e à manutenção que daria para restaurar cada coluna de madeira já corroída pelo tempo.
Agora não importa mais, ali, sentado na cauda daquele piano velho e, agora, desafinado, fechei meus olhos e pude ouvir com delicadeza um conjunto de notas suaves. Notas que traziam até meu rosto a sensação da brisa leve do outono, o barulho das folhas secas que caíram das árvores e se espalharam pelo jardim plano e o cheiro do café forte da vovó misturado com o cheiro dos biscoitos frescos que esfriavam na janela da vizinha. Era como voltar no tempo.
E de repente todo aquele cheiro e aquele som, juntavam-se pouco a pouco com a música do piano e se transformara numa imensa orquestra satisfatória e, com um pouco mais eu já podia voar com um sorriso puro em minha face até que a realidade, que nunca brinca em serviço, me alerta: “Quem está tocando o piano?”.
Não havia ninguém tocando, não havia música, nem desafinada.
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